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2008/02/07

Sermões do Padre António Vidigueira - Sermão de Santo António aos coentros

Inauguramos hoje uma nova rubrica de autoria do nosso colaborador o Padre António Vidigueira. São os seus sermões, alguns dos quais o tornaram famoso nas colónias do ultramar. Esta rubrica vai a par das Fábulas de La Gardère que temos vindo aqui a reproduzir em rigoroso exclusivo.
Aproveitamos assim também para nos associarmos à comemoração do bi-cinquentenário (50x50=100) do nascimento do Padre António Vidigueira e nos integrarmos nesta comemoração nacional que tanto excita os corações portugueses.


Sermão de Santo António aos coentros

Estava D. Leonor posta em seu recato. Mas isso não tem nada a ver com este sermão. Os recatos de D. Leonor já a gente os conhece, infelizmente. E já sabemos que é de recatos que são feitos os espíritos mais depravados de que, hélas!, temos conhecimento.
Adiante, pois.
Os coentros, esses hábeis companheiros de uma boa açorda, estavam em maré de azar. A sopa azedara. A carne apodrecera. O doce talhara. Os coentros agitavam-se e denotavam mesmo um ligeiro incómodo na perspectiva de uma refeição totalmente falhada. Abanavam seus delicados caules e a folhita raiava a amerelidão. "-Não!", gritou convicto o coentro chefe. "-Não que se não me desse, ó não!, passar desta vez sem perfumar a açorda e acompanhar o paladar da carnita porcóide. Mas, participar num embuste culinário, colaborar na mediocridade degustativa, cumprir um destino falhado, isso não! Coentro que se preze não pactua com a mediocridade."
Disse e contemplou o doce homem, coberto de escassa e andrajosa serapilheira, que o olhava atónito, ali a prudente distância.
Onde é que já se tinha visto um coentro a falar..!
Dirigiu-se-lhe cauteloso, não fosse o coentro perder o fio do raciocínio, e disse-lhe:
(e é aqui que começa o sermão propriamente dito...)
"-Ó nobre coentro, tu que cobres de perfumado aroma estas paragens, repara como nem todas a ervinhas que no monte crécem (sic!) tão agradável aroma soltam. Repara nas criaturas pútridas e fétidas que soltam cacas e merdas, por vezes purulentas devidas às febres e sezões que as apoquentam e transformam esta atmosfera de exaltação olfativa num pasto de fétidas inalações. Repara nessas outras criaturas que se revelam inúteis ou mesmo perniciosas ao ambiente que as rodeia, não acrecentando (sic!) nada à cadeia das cousas vivas e naturais. E, no entanto, tu, tu!, revelas, na tua singeleza e enorme luminosidade, um enorme poder: dás perfume à açorda!"
Disse isto (enquanto o coentro pensava "Luminosidade, eu?!..."). E, conforme o fazia, assim soltava grande soma de impropérios irrepetíveis, surpreendentes e ignotos. Era um comportamento surpreendente e inclassificável. O coentro apreensivo com esta atitude de duvidosa génese do doce homem falou-lhe:
"- Ó doce homem, tu que sabiamente te pronuncias sobre a minha condição, fugazmente e em delírio, escuta agora o que tenho para te dizer." E segredou-lhe ao ouvido algo que o cronista não conseguiu captar.
Paciência, fica para a próxima.

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